Rock in Rio? Relembre o ‘Woodstock brasileiro’

Aline Rosa
Rock in Rio? Relembre o ‘Woodstock brasileiro’

Lançado em 2019, o documentário O Barato de Iacanga cumpre seu papel de recuperar a memória e reunir em um só em lugar registros e histórias de bastidores de um dos precursores dos festivais de música como conhecemos hoje no país. A obra se destaca pela originalidade de registrar na posterioridade um capítulo importante, e que muitas vezes não é lembrado, da história da música brasileira.

Considerado por alguns como a versão brasileira de Woodstock, a primeira edição do Festival de Águas Claras aconteceu entre 1975 e 1984, no município de Iacanga, a 380km da capital São Paulo, reuniu mais de 10 mil pessoas e contou com a presença de grandes nomes da música nacional como Gilberto Gil, Hermeto Pascoal, Luiz Gonzaga, Egberto Gismonti, Sandra de Sá, Raul Seixas, Alceu Valença e a primeira apresentação ao ar livre de João Gilberto. Tal como o evento dos Estados Unidos, a ideia era promover um espaço que unisse música, cultura e espaço de resistência em meio à ditadura militar no Brasil em sua época de intensa repressão aos movimentos culturais alternativos.

Histórico do Festival de Águas Claras

O documentário acerta ao juntar os elementos de uma parte muito importante da história dos festivais de música brasileira. Com imagens de arquivo e registros do noticiário da época, O Barato de Iacanga consegue transportar o espectador em uma imersão única ao auge da liberdade musical que apenas os anos 1970 poderiam ter. O documentário nos presenteia com depoimentos de grandes nomes da música brasileira juntamente com o olhar único das pessoas que fizeram parte da organização das quatro edições do festival, idealizado por Antonio Checchin Junior, conhecido como Leivinha, na fazenda da família em uma cidade do interior que hoje tem pouco mais de 11 mil habitantes.

Seis anos depois da primeira edição do Woodstock, Leivinha (com apenas 22 anos na época) tinha o sonho de criar um evento pequeno, menor ainda que o idealizado nos Estados Unidos apenas para reunir os amigos, familiares e funcionários da fazenda. A segunda edição do evento só pôde ser realizada em 1981, já que na primeira edição, o festival já virou alvo das autoridades da época. Para realizá-lo, Leivinha teve que pedir autorização ao delegado Silvio Pereira Machado, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e assinou um termo onde se comprometia a não atentar contra a “moral e os bons costumes”.

Entre os vários pontos de semelhança entre o Festival de Águas Claras e Woodstock, gosto quando O Barato de Iacanga deixa evidente a conexão dos jovens da época aos ideais do movimento hippie e ao rock’n’roll. O documentário é mais do que uma simples recordação dos “bons tempos”, ele propõe uma reflexão sobre a importância da música e da cultura num geral como forma de resistência e sobre como esses momentos como esse podem influenciar positivamente gerações futuras de artistas e de amantes de música.

Olhar do diretor

A escolha de Thiago Mattar, que assina a direção e roteiro juntamente com Guilherme Alagon, em mesclar depoimentos do passado e do presente, mostrando a percepção dos envolvidos, dá a oportunidade de se sentir parte de um momento histórico. Thiago é jornalista de formação, e em sua estreia como diretor, desempenha com excelência a responsabilidade de lidar com um material histórico, conseguindo prender a atenção do público que não tinha conhecimento sobre o evento, e ao mesmo tempo nostálgico e emocionante para aqueles que puderam vivenciar de perto. O diretor também tem uma ligação pessoal com o festival: seu pai foi a uma edição e sua bisavó morou no município de Iacanga. Mattar nasceu 4 anos após a última edição do festival, que aconteceu em 1984, e resolveu há pelo menos 15 anos começar a pesquisar sobre o assunto.

O diretor repete a trilha de sucesso após ter trabalhado em outras produções que narram a história de artistas do cenário musical como os documentários Belchior: Apenas um Coração Selvagem (2022), Se Eu Fosse Luísa Sonza (2023) e Eu, a Viola e Deus (2022) que retrata a vida e a obra do ator, cantor, compositor e apresentador Rolando Boldrin. O diretor fez um longo e cuidadoso trabalho de pesquisa para conseguir os materiais de acervos pessoais e públicos, além de emissoras de televisão para compor o documentário.

Faltaram holofotes

E é impossível não acrescentar uma experiência pessoal ao texto, ainda mais quando se trata de música. No meu caso, quando soube da existência do festival e consequentemente do documentário, não entendi como esse assunto não é uma pauta recorrente no cenário cultural de festivais de música. Em uma rápida pesquisa, não consegui encontrar muitos links relacionados ao evento.

Se grandes festivais brasileiros como Rock in Rio (que teve a primeira edição em 1958, um ano após a última edição de Águas Claras), João Rock e Turá existem hoje, é porque lá atrás uma porta foi aberta pelo Festival de Águas Claras. Inclusive, cabe a estes festivais continuar o legado deixado pelo evento, com uma boa curadoria e celebração da música de fato, sem pirotecnias excessivas e preços exorbitantes. Afinal de contas o público quer ver e ouvir o artista, qualquer outra atração além disso pode ser vivida em outros lugares que não tenham a música como protagonista.

Resgate histórico

O Barato de Iacanga é um documentário de grande relevância histórica e cultural, que resgata a memória de um evento emblemático. A obra ganhou como melhor filme júri popular no prêmio Arquivo em Cartaz de 2019 promovido pelo Arquivo Nacional. Em um contexto onde a memória cultural muitas vezes é negligenciada, obras como esta desempenham um papel crucial ao manter vivas as histórias que mudaram o cenário musical brasileiro e fazer com que outras gerações possam descobrir e se apaixonar pela história do festival.

Assista a O Barato de Iacanga na Netflix.

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